Quote/ Unquote - Entre a apropriação e o diálogo

Diz-se que Edgar Degas terá afirmado que era preciso copiar os mestres para se ser pintor, para a educação do olhar e a mestria da técnica. Copiar os mestres seria uma forma de reverência ou, então, como em lendárias intrigas de falsificações, de alimentar um voraz mercado da arte. O caso mais audaz da utilização da cópia na história da arte recente é, provavelmente, o de Richard Pettibone, que copiou, em miniatura, obras de artistas muito próximos no tempo - por exemplo, a Brillo Box de Andy Warhol, produzida por este artista em 1964 e copiada por Pettibone em 1969. Na sua obra, José Almeida Pereira apropria-se tanto de iconografias gráficas (logótipos de marcas, por exemplo) como de pinturas famosas para efectivar uma espécie de aprendizagem de códigos da visão, desmontando-a. Estas pinturas não são exactamente cópias e não passariam por falsificações - trazem coladas referências muito claras a obras famosas, transportando-as para outra temporalidade do olhar. A construção técnica destas pinturas é de somenos importância porque sabemos que o artista a domina; o que nelas importa é a deslocalização do olhar sobre a história, a afirmação de que é sempre a partir do presente que vemos o passado, e vemo-lo, agora, assente numa cultura retiniana processada pela tecnologia

Ana Anacleto e Gabriela Vaz-Pinheiro
Catálogo da exposição - Quote/unquote - editado pelo MAAT, Fundação EDP, 2017

Trabalhar o pensamento para formalizar a dúvida

Permitam-me que partilhe aqui dois episódios da minha vida profissional antes de abordar de modo mais direto a exposição do José Almeida Pereira. O primeiro passou-se há mais de vinte anos. Uma instituição museológica nacional convidou-me para escrever notas biográficas sobre mais de cinquenta artistas do século XX para um catálogo seu. De Picasso a Rothko, de Vieira da Silva a Warhol, a tarefa acabou por se revelar hercúlea, pois resumir numa página a vida de um autor ao mesmo tempo que se esboça um laivo de comentário histórico-crítico sobre o respetivo percurso é, na verdade, um exercício de rigor e concisão muito difícil. O museu não sabia bem como quantificar o valor desse trabalho e disse-me para ser eu a propor os honorários. Inocente, cobrei uma quantia que olhando para trás era verdadeiramente ridícula face à quantidade de trabalho que tinha tido. Pasme-se com este detalhe: vim a saber mais tarde que o tradutor desses meus textos cobrou mais do que eu! Neste mundo desregulado da cultura os artistas e os autores não sabem, definitivamente, defender-se. Já os tradutores, por exemplo (e já agora os designers gráficos) são muito mais assertivos no modo como tabelam os seus preços – daí também já me ter acontecido ter sido pago menos de que o designer de uma publicação de uma exposição da qual fui comissário (e tenho a certeza de que isto já se passou com outros colegas meus).
Segundo episódio: quando fui diretor do CGAC, em Santiago de Compostela, comissariei uma exposição intitulada 93, com mais de cem artistas internacionais. Para a sua montagem vieram vários assistentes de artistas muito famosos montar as respetivas obras. A certa altura, estava numa das salas de exposição e olhei para duas pessoas a trabalhar. Um era o assistente de um artista que tinha vindo mediante uma tabela de honorários que o estúdio desse artista tinha fixado (e que, diga-se, eram bem generosos…). Ao lado, um artista inglês meu amigo suava a refazer uma espécie de pintura mural de 1993. De repente gelei, pois apercebi-me que por esse trabalho não estávamos a pagar nada, para além dos habituais per diems, viagens e acomodação. Ou seja, uma situação surreal, que imediatamente tive de corrigir, não sem antes que os burocratas financeiros que geriam o dinheiro do museu esperneassem violentamente. Ou seja, admite-se mais facilmente pagar a um “técnico” que trabalha para um artista, do que ao próprio artista.
Servem estes dois episódios para ilustrar uma das questões centrais na atual proposta expositiva de José Almeida Pereira. Distópica e complexa nos seus pressupostos, a proposta conduz o espectador em direções à primeira vista incongruentes. A pintura deste autor reinterpreta momentos diversificados da história da arte, com estratégias formais distintas e cuidadosamente articuladas. Na referência a obras de Tiziano (Sísifo, 1548-49), Vermeer (A Leiteira, c. 1657-58) e Millet (As Respigadoras, 1857), o artista escolhe com precisão temas que se associam à questão da representação do trabalho, tanto na sua vertente pragmática, como mitológica. A oscilação entre essas realidades ecoa no modo como as pinturas são reinterpretadas, naquele que tem vindo a ser um idiossincrático modus operandi, isto é, num desfasamento associável à representação 3D, onde a profundidade só seria apreendida com os respetivos óculos. O efeito hipnótico conseguido é um contundente comentário sobre o modo como hoje em dia rececionamos as imagens, na maior parte das vezes num segundo grau distanciador e enganador. Na qualidade exímia desta pintura pressentem-se horas e horas de trabalho de precisão extenuante. Assim, tema e forma fundem-se num magma conceptual que se ancora enquanto exercício crítico sobre o próprio ato de pintar.
Já nas obras sobre vidro, José Almeida Pereira remete para as formas do primeiro modernismo, nomeadamente da pintura engajada do período revolucionário russo. Aqui a serialidade, a rarefação geométrica e formal remetem para a busca de universalidade de uma linguagem substitutiva de velhos e anacrónicos códigos representacionais que se identificariam com o “antigo regime”. O nivelamento da prática artística enquanto responsabilidade coletiva correspondia à descoberta de um vocabulário totalmente novo, ao qual a sociedade responderia com um novo modo de habitar o mundo, com uma mudança de paradigmas comportamentais, políticos e sociais. Todos sabemos como acaba a história: as preocupações propagandísticas eram demasiado urgentes para que a assimilação desse novo vocabulário visual se tivesse verdadeiramente podido impor. O realismo socialista correspondeu ao reverso abjeto da utopia vanguardista. Ficou, no entanto, esse lastro utópico (mais tarde tentado na germânica Bauhaus) de uma equivalência das disciplinas artísticas, na imersão qualitativa e quantitativa dessas propostas no quotidiano. 
Ao referir estes momentos históricos José Almeida Pereira questiona não só o valor associável ao trabalho artístico, como também o valor que esse trabalho detém no seio de conjunturas histórica, social e geograficamente definidas, nomeadamente na sua receção e no seu valor-uso. A opacidade na aferição destes parâmetros é aquilo que define a nossa civilização ocidental, moderna e contemporânea. O grande problema é que aqui não existe um exterior. Seja marginal, seja herói reclamava o artista brasileiro Hélio Oiticica numa obra de 1968. Tarefa tão impossível quanto desejável nos nossos dias, dir-se-ia. No entanto, acabam por ser refrescantes os momentos em que somos obrigados a olhar-nos no espelho e sentir que a imagem devolvida não corresponde a um reconhecimento pacificado. É esse o maior mérito de José Almeida Pereira. 
Num segmento adicional da exposição, este orquestrador de situações, como me apetece descrevê-lo, convidou dois artistas a colaborarem na sua proposta. Índice de uma troca simbólica alternativa ao “pagamento” convencional, nele se aduzem elementos de estranheza vital que acabam por reverberar no leitmotiv que subterraneamente percorre a mostra. A escultura de Cristina Regadas não só parece fantasmagoricamente materializar a pedra que Sísifo punitivamente carrega, como remete para uma estratificação paleontológica que condensa diversos materiais associáveis a vários tipos de trabalho, sendo o cimento, material moderno por excelência, o aglutinador. Já nos vídeos de Max Fernandes o curto-circuito entre a imagem manipulada, a escrita e a manualidade do desenho sobre um fluxo imagético filmado no seu atelier, num dos vídeos, e as síncopes soporíficas ou ativadoras de um estado de transe no outro registo, acabam por igualmente referir o estado “fordiano” da produção, mesmo que a artística, por mais que se disfarce de unicidade, intemporalidade e se valide por via da autoria.
José Almeida Pereira sabe que facilmente poderia singrar numa economia de mercado por via das suas qualificações e dotes técnicos. Esperemos que nunca veja F for Fake de Orson Welles, caso contrário até se poderia entusiasmar com a glamorosa vida de falsificador profissional de sucesso. Felizmente para nós escolheu a via da dúvida e da inquietude. É sempre preferível um rebelde a um acomodado. Dá mais trabalho, a ele e a quem observa, certamente, mas essa é uma urgência contemporânea. 

Miguel Von Hafe Perez
Folha sala da exposição individual (com participação de Cristina Regadas e Max Fernandes) - Simulabor - Galeria Graça Brandão, 2017

UM (ANTI-)TRABALHO DO OLHAR. UM ESPAÇO PARA (RE)PARAR_ David Silva Revés, 2017


Sente-se, na pintura de José Almeida Pereira, as marcas de um olhar atento. Perscrutador. Naquilo em que a atenção tem de tempo, de demora e paragem. Um olhar agitado. Naquilo em que a agitação tem de agir, de acção transformadora, de construção. Um olhar em movimento, inquieto, resistente e resiliente face a um meio em obstinada expansão (em número de possíveis) mas em inconsciente contracção (de profundidade sensível). Um meio enquanto estado perene no qual a hipermodernidade tecnológica tende a enredar viciosamente, no engodo salvífico de glorificação pela imagem, um mundo que (a) cada vez Mais parece menos mundo. Um mundo veloz, fugaz e fugidio, adúltero do seu próprio chão, que reduz a um plano liso de texturas as suas camadas intersticiais, e onde nos anestesiamos com injecções contínuas de nós próprios. - A velocidade traz o entorpecimento à trama das relações que construímos. Uma vertigem para a sua construção (das relações) enquanto véu virtual de espelhamentos com o qual, tão prontamente, nos fazemos cobrir.

Precisamos de corpos que olhem, e que não apenas se vejam. Que percebam os lugares que pisam e se principiem nas oscilações de um percurso que se vai tecendo com a ponta dos dedos – e aqui os dedos como a pedra de toque da relação háptica que desenvolvemos com o mundo: com o Outro.
José Almeida Pereira é claramente um deles. Pelas relações que estabelece e pelos objectos que apresenta. A sua pintura é feita com os dedos. É uma pintura de toque. Ela toca o mundo (no sentido não estrito e mais pleno da palavra). E é enquanto toque, enquanto estado de revelação de um encontro que se faz no espaço do olhar – enquanto vector de múltiplas direcções e de afectações mútuas – que ela fissura a fina camada aplanada das imagens que lhe chegam (ao artista), para devolver corpo a essas imagens, a forma física dos referentes que as antecederam, o seu valor intrínseco enquanto pintura, enquanto matéria sensível composta de pigmentos.
Neste estado de humanidade povoado, e arriscaria dizer dominado, pelo ecrã digital que perpetua uma desfasada percepção da possibilidade de tangência da realidade; ecrãs por onde vemos e onde nos vemos – ecrãs onde nos fazemos e onde somos –, o projecto (ou talvez prefira dizer: o fazer) pictórico de José Almeida Pereira lança-se, em queda livre que não prevê chão, na ambivalência crítica de um pensamento mais alto sobre o regime de visibilidade e construção da contemporaneidade e do indivíduo. Aí reside, em grande parte, a relevância deste trabalho (e a uma ideia de trabalho voltaremos) no seio dos discursos artísticos actuais. (não se tome isto com o valor negativo de uma pretensão)

A forma idiossincrática como traz, por evocação evidente e delegada, e também como gatilho para uma aproximação rápida e eficaz do espectador, as imagens de obras famosas que povoam uma consensual historiografia da arte - índices constituintes de uma memória visual colectiva e unificada -, mais do que sublinhar um movimento das obras-primeiras em se transformarem e se transfigurarem em imagens flutuantes – pairantes -, usadas e apropriadas como manifestações de pertença, presença, lembrança ou posse, desviando-se de um valor de aparição e revelação de forças para se fixarem (não por vontade própria) num mecanismo artificial de sustentação e sobrevivência do próprio sistema artístico e visual; mais do que apontar um movimento da imagem em se fazer sucessivamente imagem, em diferidos constantes, convertendo no espaço pictórico criado uma metáfora para esse mesmo movimento através de arrastamentos velozes, sobrepostos e fantasmáticos da figura ou de uma paleta rapidamente associada a um universo tecnológico e virtual, a pintura de José Almeida Pereira parece-me apresentar, justamente, e também por isso, uma indagação prática (porventura metafísica) sobre o papel e o lugar do corpo. E não falo apenas do corpo do pintor estritamente enquanto agente de um fazer, pois isso estará desde logo implícito no acto de pintar – na realidade concreta das pinturas que apresenta – falo, sim, e partindo das marcas presentes nas suas pinturas, de uma reflexão sobre o lugar, espacial e sobretudo mental, do corpo que está, do corpo que olha, do corpo que age, do corpo que pensa. Um corpo presente, inserido no espaço e no tempo. Um corpo que é. Um corpo que, mesmo parado, está em movimento. Ou um corpo que, mesmo em movimento, conserva o lugar de paragem onde o pensamento acontece.

Uma reflexão sobre o lugar e o sentido do indivíduo contemporâneo (porque estamos neste tempo e nestes lugares), enquanto ser em relação operante e sensível, enquanto estágio de mundo. Coloque-se, novamente, a pergunta presente na folha de sala da exposição que me acompanha nas linhas deste texto. Retenhamos a interrogação:
“Para onde se atentará o corpo humano?”
A ameaça da imagem plana (porque desapropriada das suas texturas de mundo), entrópica e convulsa, atomizada e vertiginosa, manifesta a crise do indivíduo na sua ontologia concreta. A sua velocidade cria indivíduos que não conseguem parar. E a paragem é, sem dúvida, propiciadora às volutas do pensamento, dá tempo ao olhar: um olhar atento, um olhar-pensamento. José Almeida Pereira funda nesse tempo. A sua pintura tem a paragem dentro. Teremos nós, ainda, a capacidade de parar? Reparar? Reparar (n)o olhar? Agir com o olhar?

E porque parto da exposição patente da Galeria Graça Brandão, debrucemo-nos sobre ela por momentos (e espero fazer destes momentos de paragem).
Esta é uma exposição que parece viver no paradoxo, na ilusão de aparências. Mas as suas forças contrárias (que só num primeiro nível poderá fazer transparecer) mais não fazem do que se afirmar e reforçar mutuamente – porque um paradoxo vive na simultânea afirmação dos seus contrários. (e assumo o peso das minhas palavras – porque minhas).
Tic… Tic… Tic… “Relógio”, o som do vídeo de Max Fernandes na sala escura da galeria e que por ela ecoa dá a cadência à exposição, dá-lhe tempo, dá-lhe máquina. E, se repararmos, veremos em alguns espectros de luz difundidos pela bola de espelhos onde o vídeo se projecta, a pequena imagem de uma mão que acompanha o ritmo maquínico. Mas a máquina subjaz, sob a sua égide universal e negra - a mão só vive no espectro – na imagem de mão em movimento ordenado e contínuo.
O homem-máquina, o homem de trabalho incessante, imposto pela velocidade e constância dos dias, por uma sociedade que o enforma enquanto tal de forma inconsciente, é o homem que vive dentro da imagem. Vive na imagem – porque preso na continuidade do fazer (tic… tic…). Uma imagem que gera, que mantém e que, ao mesmo tempo, o antecede, sem lugar para a paragem e descoberta dos seus próprios intervalos de existência. Ele vive na ideologia do seu próprio espectro. (vive?)

Gostaria, pois, de pensar que a ideia de trabalho que se manifesta em toda a exposição, em especial nas pinturas de José Almeida Pereira que representam actividades de um fazer humano, mais do que sublinhar e glorificar a presença e acção do corpo do indivíduo como o contraponto metafórico ao seu próprio desmembramento pela imagem constante e trabalhada de si, pode ser aqui extrapolada como uma reflexão crítica e ambivalente sobre uma possível refracção do indivíduo enquanto ser de pensamento – um entorpecimento da capacidade de olhar. Porque o corpo que trabalha na imagem é um corpo adormecido de si próprio. A máquina expande, mas a máquina limita. A máquina dá às mãos mas tira aos olhos.

David Silva Revés para a magazine online "Contemporânea" - http://contemporanea.pt/edicoes/11-2017/um-anti-trabalho-do-olhar-um-espaco-para-reparar 

A PINTURA ENQUANTO DESACELERAÇÃO_ Ivo Martins, 2017


I–

Depois de rever algumas das obras do José Almeida Pereira, a palavra crise vem à mente. Termo recorrente em jornais, televisão ou conversas de café, esta designação tem atualmente um significado diferente daquele do passado, estando centrada nas dificuldades económicas, problemas com a inflação, queda na procura, falta de liquidez, novos impostos, cortes nas subvenções ou despesas públicas, etc. A crise abrange toda a vida contemporânea – incluindo naturalmente a arte – e com o passar do tempo tem vindo a perder o seu sentido original. Crise, em grego – krisis –, possuía diferentes aceções que variavam segundo os autores. Em Tucídides era sinónimo de “contenda” ou “disputa”; em Platão representava um padrão, donde provinham critérios que funcionavam como base para se julgar, embora nas obras deste filósofo também fosse usada como habilidade para discernir. Da crise derivava acima de tudo o sentido crítico, isto é, um processo base para se realizar um julgamento. Hoje, qualquer acontecimento adverso, incompreensível, estranho ou violento é mediaticamente considerado como sintoma de uma crise. Representando uma atribuição completamente despersonalizada que serve para alijar responsabilidades, a crise adquiriu uma conotação estranha e esquiva, não conseguindo escapar aos chavões e às uniformizações do pensamento sistémico e acabado, transformando-se numa entidade abstrata, vagamente sinistra, que rege o mundo e a vida das pessoas.

Esta deformação, de certo modo fictícia, simboliza a enorme solidão do homem pós-moderno. Nesta ideia de crise não há solução nem conclusão. Assim, não é possível preparar o terreno para se fazerem novos ajustamentos, refinando estratégias, atacando os problemas com a certeza de que se irá conseguir recuperar a segurança perdida. O vigor das forças em presença não são controláveis e o homem é incapaz de reequilibrá-las. A crise atual é realmente diferente das anteriores porque exige mudanças radicais no sistema. Será possível alterar este modelo de vida, assente no consumo intensivo de bens? As anteriores crises eram passageiras e foram resolvidas com intervenção do Estado através de políticas de criação de emprego e dinamização da economia.
No capitalismo global, os países estão demasiado endividados e economicamente enfraquecidos para poderem investir em obras públicas como sucedeu no passado. No fundo, a economia passou a ser governada pelas leis do mercado, uma entidade abstracta que monopoliza e impulsiona o crescimento a uma velocidade nunca até aqui experimentada. O consumo suporta um sistema económico que usa todo o tipo de estratégias para se manter em permanente aceleração. Neste sentido, a crise atual já não desencadeia sentimentos optimistas em relação ao futuro nem estimula o aparecimento de modelos criativos ou de rutura tendo em vista melhorar o bem-estar.

Depois de se chegar à conclusão que é impossível escapar às consequências da crise e que ela está presente no nosso quotidiano, isso também influencia as atividades artísticas. Tentemos analisar os seus efeitos no domínio da arte, expondo algumas das suas manifestações. A arte atual vive numa sociedade em permanente crise, sendo difícil contrariar a tendência mercantilista que abrange todas as atividades humanas. A essência de qualquer atuação artística deveria fundamentar-se na abordagem de pontos críticos culminantes que relevassem as fraquezas e incoerências do sistema político, social, económico no qual está inserida. Sem o contraste dialéctico entre a negatividade da arte e a positividade do sistema que transforma em mercadoria todas as coisas, não se consegue distinguir as obras de arte das demais atividades produtivas. Sem sentido crítico, [a arte/o artista?] facilmente se deixa enredar num discurso de crise global que tudo abrange, dirige e influencia. Assim, muita da arte que se faz hoje é desprovida de um aprofundamento crítico e torna-se parte de um fluxo imagético quotidiano que promove, incentiva e glorifica o consumo. Raramente as suas manifestações são fortes na negatividade, no pessimismo, na denúncia, pelo que não envolvem mudanças ou renascimentos significativos após cada ruptura. Em resumo, nada na arte contemporânea supõe um sentido de maturação, desaceleração da experiência criativa, uma escolha ponderada e demorada, lenta decisão. Tal como a discordância, divergência ou oposição: a arte deixou-se levar na grande vaga consumista que tudo arrasta. A crise que no passado simbolizava um elemento discrepante que exprimia vontade de mudança foi amestrada, levando consigo a arte que agora faz parte do espetáculo dos media. Porque já não há mudança possível, a omnipresença do mercado torna-se cada vez mais patente no impasse económico em que a sociedade se encontra mergulhada.

II–

Apesar da “gaiola de ferro” que é o capitalismo – como Max Weber referiu –, no qual as pessoas estão aprisionadas, alguns artistas resistem e insistem na velha atividade de pintar. Nesta insistência afirma-se a crença num certo tipo de conhecimento. Desse modo, pode perguntar-se qual o tipo de impulso que leva os pintores a persistir no trajeto aberto por uma prática artística arcaica. Talvez esta forma de agir contenha uma estranha atitude crítica porque, sendo lenta tanto no seu processo de produção como nas exigências de conhecimento e controle técnico, simboliza uma declarada recusa da velocidade do mundo atual.
Ainda assim, parece que um pequeno grupo de indivíduos, minoritário e escasso, busca na pintura um processo de afastamento da torrente da arte enquanto espetáculo e realiza um tipo de ascese, envolvendo-se com o passado. Recusando uma realidade saturada de estímulos imagéticos, este pequeno núcleo de pintores segue os passos de tantos outros artistas fulcrais na história da arte. Neste sentido, é também possível entender-se a pintura como manifestação de carácter afirmativo num contexto difícil e inseguro, saturado de imagens e de discursos, onde dispositivos tecnológicos de elevada sofisticação controlam os processos audiovisuais para assimilação individual. O ato de pintar pode ser entendido como recusa, desacordo, negação, censura, confronto, desvio. Pintar, nos dias de hoje, deve ser entendido como afirmação de um território anónimo, íntimo e pessoal. Este território também se localiza nas zonas abandonadas pelo sistema produtivo: as periferias, as fronteiras ou os espaços urbanos vazios representam a obsolescência dos excessos produtivistas.

A pintura, apesar de estar bastante cotada no mercado global da arte, apresenta zonas vazias de intervenção criativa. O artista pode tirar partido das fraquezas do funcionamento do sistema, explorando as áreas de atuação deixadas ao abandono pelo processo seletivo através do qual o mercado impõe as suas tendências. Como afirma Byung-Chul Han em O Aroma do Tempo – um ensaio filosófico sobre a arte da demora, “o fazer humano ao perder a sua dimensão contemplativa degrada-se em pura atividade e trabalho” (citar?). A pintura poderá tornar-se numa das poucas formas de contemplação e desaceleração num mundo cada vez mais apressado.
Ao pintar, o artista nega a velocidade de um universo regido por entidades dispersas, sem conexões equivalentes, pouco livres e autónomas, embora dominem e controlem com o seu olhar acutilante e vigilante todas as imagens produzidas. O termo pintura é em si mesmo um conceito problemático: hoje, a imagem pintada não possui a mesma carga simbólica do passado e as qualidades da pintura só muito raramente se encontram reunidas num único corpo de trabalho.

Pretendemos defender a pintura e o dom do artista, isto é, esse impulso de usar as tintas como meio de expressão para exteriorizar coisas da sua imaginação. A partir da experiência da visão pode inferir-se que qualquer pessoa está sujeita aos condicionalismos de um terreno movediço, volúvel e difuso, no qual todo o tipo de explicações são legítimas e aceitáveis. Desde a mera observação in loco à projeção luminosa na imaterialidade de um écran, o seu campo de interação com o real é vastíssimo; atualmente, tudo pode ser combinado, numa torrente de imagens sobrepostas que se repetem à exaustão. Com os avanços tecnológicos que criaram dispositivos de captação e reprodução, a pintura tornou-se presa fácil da imagem, sendo difícil escapar à sua banalização: o digital que se sedimenta em ficheiros de alta resolução; obras-primas da história da arte que se disseminam pixelizadas em poderosos motores de busca. A descrição, organização e sistematização das experiências sensoriais dos observadores, contidas nos grandes livros da história da arte, está em decadência num mundo onde tudo se atomiza sem princípio nem fim. É difícil o papel da crítica [?] num território com estas características, onde as imagens e objetos de arte formam um espaço algo caótico e sincrético, de uma fragilidade evidente. A arte contemporânea está saturada de discursos e explicações que nada acrescentam. As explicações interpretativas tanto podem conter avanços como recuos relativamente ao que foi percepcionado noutras ocasiões anteriores. Numas situações registam críticas consistentes, noutras narrativas absurdas, geradas pela visualização comparativa entre diferentes etapas de criação na pintura. Isso traz vantagens e desvantagens na compreensão da força gerada pelas imagens: se nuns casos se atiram as referências da pintura atual para um limite além do atingível, onde tudo parece esgotado, noutros este estado de exaustão desincentiva o trabalho de pesquisa, convidando as pessoas a desistirem de procurar. Por causa desta desistência as reflexões sobre as imagens da pintura atual tendem a ser iguais e uniformes, registadas em análises e explicações redundantes.

O que sobressai nesta exposição é um processo de fé, uma humildade de se acreditar no que se fez e na possibilidade de se voltar a fazer. Nesse sentido, é negado o discurso dissuasor que convida à passividade e, em última instância, a não pintar. Através de um trabalho persistente e lento, o artista vislumbra um horizonte onde sente haver espaços de criatividade ainda por perscrutar. Todo o indivíduo que cria neste início de século tem de experimentar e sobreviver num clima de esgotamento em que tudo parece repetir sem nunca estar concluído. O artista está indefeso face a uma realidade que o empurra para a ação e para o trabalho, descuidando a contemplação e o pensamento. Conseguir criar peças verdadeiramente originais ou singulares corta a ação porque imaginar pressupõe parar. Num mundo acelerado, esta necessidade de abrandar e contemplar persegue todo o artista como um fantasma, uma má sorte que o faz duvidar da utilidade e pertinência da sua obra. Começar uma busca libertadora através da pintura indica que a ação deve conter momentos de interrupção para não ser consequência de trabalho. Agir desconhece a dúvida. Assim, o artista deve duvidar pois quem não é capaz de duvidar torna-se trabalhador, isto é um homo laborens. 

A pintura de José Almeida Pereira invoca a contemplação, contra um futuro entendido como continua exigência de ação. Pelo facto de remeterem para o passado, estas obras interrompem a repetição do sempre igual cuja atividade é empobrecedora e permitem ao observador ter uma certa experiência, deixando- se afectar, implicar, comprometer, transtornar, transformar. É inegável que o artista possui um talento natural para a pintura e as energias geradas por esse talento constituem um problema que ele tem de resolver. O mesmo acontece com o escritor, com o músico, o escultor, o coreógrafo, o performer, que para escaparem ao domínio do tempo e da vida ativa têm de buscar uma certa forma de quietude. As obras em exposição reconfiguram momentos de vida contemplativa onde tudo o que existe no exterior parece ser inimigo e conjugar- se para incentivar a vontade de trabalhar. O autor encontra-se envolvido numa múltipla solidão. A sua, que lhe é própria, única e intransmissível e que, sendo impossível de se comunicar por palavras, assume-se num estar sozinho no meio de muita gente, criando espaço para se entregar a si próprio. Nas suas obras ele respeita o legado da pintura e corajosamente integra uma corrente de artistas que desde sempre desenvolveram esse meio de expressão, exprimindo dúvidas, inseguranças, formulando tentativas de superação pessoal relativamente aos condicionalismos do seu tempo.

Um quadro bem executado – e principalmente quando é figurativo – suscita sempre curiosidade sobre quem ou aquilo que o causou. No entanto, é razoável perguntar-se como reagiram às obras-primas os indivíduos de diferentes épocas. Teriam a mesma capacidade de as julgar e distinguir o que era fruto de uma ação propositada daquilo que era acidental? As obras-primas são fiáveis indícios de talento, encerrando interrogações que perduram no tempo. Por outro lado, o pintor é um ser humano, um homem entre muitos que se esforça por se diferenciar, movido pela sua visão pessoal. O indivíduo que agora retoma as imagens das grandes obras do passado é diferente, pois coloca nelas muito mais informação e usa conhecimentos técnicos que o desviam da sua função de artífice. Assim, o trabalho produzido tem de ser obrigatoriamente diferente por razões endógenas e exógenas à arte. O que se pode observar nas obras vai muito para além do padrão estabelecido pela pintura original. O artista encontra-se perante si e todos os outros que no passado realizaram as mesmas ações. Neste sentido, na atividade de qualquer autor há sempre um misto de atrevimento e de humildade: no atrevimento o artista deseja distinguir-se dos restantes seres humanos, exacerbando a sua dimensão egocêntrica; na humildade o autor despoja-se desse egoísmo, arriscando tudo na obra, pois ignora se vai ser bem sucedido.

O pintor, como todos os homens, sente que não possui meios de expressão para descrever o que faz, sendo incapaz de explicar o trabalho que realiza. As palavras atraiçoam e são sempre insuficientes. Assim, o artista refugia-se na fragilidade das imagens, submetendo-as a um jogo visual que ele próprio inventa para contactar com o observador. A pintura de José Almeida Pereira desenvolve esse jogo e propõe diferentes abordagens e olhares sobre importantes obras da arte ocidental. Pode considerar-se que estas pinturas se assumem como arquétipos, uma base de criação a partir da qual o artista intervém. Nuns casos despojando- as dos seus pormenores identificativos, noutros acentuando-lhes os elementos cinéticos nelas inscritas. Assim, em algumas obras detetam-se espectros fantasmáticos que remetem para o facto real inscrito num quadro famoso de um autor de uma época e tradição anteriores. Alguns elementos dessas obras destacam-se do quadro original, encetando uma dança captada por uma câmara lenta imaginária que decompõe a imagem em sucessivos planos sobrepostos e transparentes. Noutras situações, o artista deseja desestruturar o que se vê com o intuito de colocar a descoberto os efeitos ópticos decorrentes da tridimensionalidade das imagens. Divide-se o espaço em sucessivos movimentos que esvaem a figura humana e o espaço envolvente numa liquefação enleante.

As obras assim produzidas são sínteses aproximativas às obras-primas que o pintor reconstrói de forma livre e lúdica. É interessante perceber que apesar das diferenças e deformações efectuadas, as obras mantêm o seu grau de identidade, indicando que a memória do observador também realiza idênticos processos de simplificação e síntese. Assim, pode dizer-se que o artista se limita a reconfigurar quadros antigos já sobejamente assimilados pelo inconsciente coletivo. Os trabalhos do pintor reinventam essas formas dando-lhes nova vida, sem se verificarem fortes perdas na sua identidade simbólica, provando que a memória visual é bastante seletiva. Estabelece ainda padrões cromáticos e formais, sem a necessidade de se definir uma grande nível de pormenorização e o trabalho exposto explora esse mecanismo de identificação assente na poética da arte.
Ao realizar estas citações sobre velhas imagens de importantes obras de arte do passado, o seu trabalho penetra numa nova esfera de referências simbólicas, aproximando-se da dissonância comunicativa. Cada troca de mensagens acontece numa superfície imagética em constante mutação, caracterizando-se pela aleatoriedade e descontrolo dos processos interpretativos. Atualmente, os olhares habituaram-se a fixar-se durante curtos espaços de tempo, em rápidos esgares sobre os instantâneos audiovisuais que invadiram a vida do observador, sujeitando-o à fragmentação e dispersão dos acontecimentos. O olhar já não consegue serenar nem permanecer quieto. Os estímulos aparecem e desaparecem em sucessivos pontos culminantes, substituindo-se mutuamente.

Em sentido inverso, a pintura de José Almeida Pereira impõe uma zona de observação adversa à velocidade, donde sobressai a lentidão do seu processo criativo. Penetra num território desestruturado e algo caótico, amplamente explorado por dispositivos mediáticos de comunicação, destruído em muitos dos seus aspetos pela imagem tecnológica que banaliza e estandardiza o real. Só um espírito despojado de interesses poderá ultrapassar estes condicionalismos conjunturais que tornam a arte actual refém da crise permanente inscrita nas lógicas de mercado. Por isso, quantas vezes o artista é levado a ter de falar sobre o seu ofício, como se fosse um profissional em relações públicas. Apesar de sentir que não tem nada a dizer é obrigado a fazê-lo sob pena de desaparecer. A comunicação exige a produção de narrativas que nem sempre são o melhor meio para justificar a pertinência de uma obra. A necessidade de se ser agradável com o público torna as intervenções dos artistas momentos de teatralização ou representação e percebe-se o artificialismo do discurso porque na verdade não há nada para dizer. No entanto, numa época saturada de mensagens, a falta de explicações cria graves vazios de poder. Hoje as imagens já não precisam de possuir legendas para ter vida própria. Elas entram num circuito global de propagação e divulgação, dispersando-se, fragmentando-se, metamorfoseando-se em lugares comuns, clichés e coisas vulgares que, sucessivamente repetidas, fazem acreditar na sua utilidade. 

Nada pode ter consistência quando o que se vê está condenado a desaparecer. A existência é muito mais do que um mero jogo de espelhos onde tudo se liquefaz através de cada repetição. As imagens correntes são relâmpagos, disparos fugazes de uma realidade iluminada, manipulada por rápidos efeitos de luz mediática, numa sucessão de casos e de novidades. O que se vê são séries de imagens apressadas que se iluminam e apagam imediatamente uma após outra.
Contra a fugacidade do tempo, José Almeida Pereira incita a imaginação do observador e convida-o a demorar-se no espaço sensível da sua imaginação para escapar à luz estroboscópica das imagens. As temáticas abordadas nestas obras fazem um retorno aos valores humanos inscritos na pintura, distanciando-se do presente e assumindo esse recuo. As pinturas apresentam-se em camadas de tempo, no contraste entre o preto e branco, o negativo e o positivo, como se se tratasse de uma imagem fotográfica. Cada obra dá ideia de sobreposição, de sedimentação, de trajeto, de um tempo expresso num espaço. O que se observa são simples espectros, pequenos vestígios, rastos de um conjunto de imagens que teimam em permanecer para sempre na memória. Num tempo onde a imagem é comunicação, a sua fixação na retina não é todavia suficiente para formar conhecimento. Desse modo, a obra-prima citada em cada pintura demora-se porque se fecha no olhar como um segredo. A exposição sugere as dificuldades e problemas de um homem pós-industrial, solitário que, sujeito a bombardeamentos intensivos de imagens manipuladas, não tem tempo para distinguir as falsas das autênticas. Nas apreensões apressadas de uma realidade dispersa e dividida, qualquer pessoa é facilmente iludida. O que se vê e escuta é o trabalho de complexos dispositivos tecnológicos a emitir sem cessar, criando uma corrente tão forte e continuada que dá a sensação de se ter constituído uma narrativa congruente. Apenas quando se desliga a aparelhagem é que se verifica o engodo.

As camadas de tempo e de espaço vão-se dispondo nas obras expostas como evoluções da perceção. O artista, com a consciência do nível de intervenção tecnológica a que tudo está submetido, produz imagens seccionadas, fraturadas, ligadas em movimentações aparentes. Com esta forma de percepcionar o que o rodeia insinua maneiras provocatoriamente lentas de trabalhar, relevando os cortes de continuidade provocados pelas visões fragmentadas dos equipamentos sofisticados que as captam, tratam, armazenam e difundem. Face a esta realidade, tem de forçosamente optar por vias de expressão difíceis que deformam a imagética corrente. Hoje, a passividade e o silêncio das imagens é uma forma de intervenção sabotadora de que o artista se serve para negar a velocidade dos processos criativos contemporâneos. A passividade e o silêncio muitas vezes simbolizam uma vontade de afrontamento mais intensa e plena. Através de um processo de diálogo comparativo com o passado, o conteúdo destes quadros expõe as debilidades da imagem atual que, sendo intermediada por dispositivos tecnológicos potentes, perdeu muita da sua densidade ontológica, fazendo aflorar de uma maneira ostensiva o superficial a frivolidade, o ligeiro. Face ao que se produz atualmente, os quadros de José Almeida Pereira sabotam processos artísticos não dizendo ou não fazendo o que os outros esperam e, sem arrependimentos, a sua pintura celebra essa recusa. Coloca-se assim contra uma estranha avidez por palavras, embora na maioria dos casos nada se aprofunde.

III –

A sociedade produtivista relega diariamente para a lixeira inúmeras coisas descartáveis, factos inúteis que formam torrentes de casos e de notícias. É também nesse sentido que Zygmunt Bauman fala de uma sociedade líquida, na qual domina o que é facilmente substituível, em detrimento do que se pauta pela duração e resistência. Desse modo, tudo o que não seja susceptível de criar prazer, satisfação e entretenimento imediato não tem interesse. A pressa do mundo comunicacional arrastou a imagem para processos de aceleração criativa e a pintura figurativa, dada a sua natural lentidão, tem vindo a perder espaço. Por isso, a sua prática é cada vez mais marginal e periférica, tornando-se um forma passadista de criação quase em extinção. É evidente que continua a existir mercado para essa atividade artística. No entanto, sente-se que depois da segunda metade do século XX a pintura tem sido desconsiderada e menorizada, porque se acredita que pode ser substituída por fórmulas de construção mais leves, flexíveis e espetaculares. Como se fosse possível trocar certos buracos negros que a linguagem não consegue exprimir por divertimentos hedonistas. A comunicação ininterrupta devassou o espaço subjetivo, expondo em tempo real e de forma obscena a esfera íntima. Tudo serve para produzir espetáculo e para divertir as multidões.

A simples digressão ao passado, à herança cultural de qualquer sociedade, pode ser encarada como uma atitude nostálgica. Contudo, o que se sente nos trabalhos de José Almeida Pereira não são manifestações saudosistas. Não são divagações ou especulações retroativas na busca de um paraíso perdido. Marx dizia que a repetição histórica de um acontecimento importante dá origem a uma farsa e isso passa-se com algumas tentativas de hipotéticos retornos ao passado da arte. Não é com restauros simulados ou simulacros de reparações que se recupera o tempo perdido ou se resolvem os problemas da arte contemporânea. É necessário algo mais, uma dimensão experimental que alargue o alcance da mente e fuja a uma arte retiniana. Só este facto poderá despertar consciências e fazer perceber que as coisas, sendo irrepetíveis, podem no entanto estabelecer novas pontes de apreensão entre passado, presente e futuro.
Antigamente, a violência e a brutalidade estavam muito mais presentes no quotidiano das pessoas e as obras de arte absorviam essa realidade. O ambiente predatório dessas sociedades gerava medos e inseguranças. O público sempre apreciou demonstrações de habilidades e necessita de ser confrontado com coisas estranhas e bizarras. A memória cultural pacifica o passado das sociedades, empalidecendo as recordações das suas origens sangrentas. A arte feita no passado reflectia um ambiente acintosamente violento, estando repleta de indícios de perversidade e agressividade.

O que as sociedades antigas tinham de incomum relativamente às de agora era a dimensão do seu choque ideológico, a temeridade face à força dos costumes, registando ousadias, atrevimentos, sobrancerias, coragem. No arcaico, o clima de violência coexistia com um saber fazer ancestral que levava os artistas a arriscar as suas vidas por causa das temáticas abordadas. Neste momento, as pessoas ao guiarem os seus comportamentos por mecanismos de imitação em série, constroem realidades feitas de factos vulgares, momentos inúteis e lugares comuns, assentes em narrativas incoerentes que se entrecruzam através de diferentes dispositivos de propagação de mensagens. Contudo, no interior deste mundo, surge alguém que consegue afastar-se destes momentos, recolhendo-se e pintando quotidianos inscritos nas imagens do passado e que os recupera com os olhos postos no futuro.

Ivo Martins para o catálogo "Bufos" editado pelo CCVF, aquando da exposição homónima no CCVF em Guimarães




ABUNDANCE_ Lauren Moya Ford, 2017

What we see, we see and seeing is changing
Planetarium (1968), Adrienne Rich1

The first time José Almeida Pereira went to the Prado Museum, “It was maybe the first time I saw nothing,” he says. José describes seeing everything at a distance: he saw the works as pictures, not paintings. He asked himself, “Do I like these pieces because I saw them in art history books? How do I judge them?” I encountered José’s painting before I encountered the artist himself. When I saw his small painting of a bouquet of flowers in a glass vase, there was something familiar in José’s brushy strokes and bright colors. I later learned that the painting was made after an original by Édouard Manet from 1882. Manet was a dedicated follower of Diego Velázquez, who painted 200 years before him. And now, José tries on another, older hand; from Manet to Velázquez, the chain remains consistent. More than a ripple of recognition, José’s copies from other artists’ work confront the limits of space and time. His mimesis of master works is methodological and theoretical; beyond emulating the original painting’s content and technique, he explores the meanings we assign to the masterpiece as a historical concept.

Museums were once filled with artists who painted copies from the old masters. Édouard Manet met Edgar Degas at the Louvre in January 1862 when they both found themselves copying the same painting: Diego Velázquez’s Portrait of the Infanta Margarida (1653). Copying masterworks had been common practice long before their meeting, but the subject matter was fairly new. Spain had restricted the export of their masterworks until the Peninsular War (1808- 1814) brought French invaders who seized hundreds of paintings by Murillo, Zurbarán, Velázquez, and other Spanish masters and installed them at the Louvre. After the Bourbon Restoration of 1815, France returned many of these paintings, a number of which became part of the Prado’s collection when the museum opened four years later. The French continued to admire Spanish painting throughout the 19th century. Between 1841 and 1880, for example, France’s Ministry of Public Instruction in Fine Arts acquired or commissioned 534 copies of the Spanish Golden Age paintings that still remained in the nation. No such practice based on the copy is in place today.

As their preference for Velázquez’s Infanta shows, Manet and Degas followed the French preoccupation with Spanish painting. On his first trip to the Prado in 1865, Manet wrote a letter to fellow painter Henri Fantin-Latour referring to Velázquez as “the painter of painters.” Degas amassed a sizeable private art collection including work by El Greco and other Spaniards using money from his family’s cotton trade in the Southern United States. He would later tell George Moore, “No art was ever less spontaneous than mine. What I do is the result of reflection and of the study of the great masters; of inspiration, spontaneity, and temperament I know nothing” (Impressions and Opinions, 1891). For Manet and Degas, copying the old masters was more than a mimetic device. At the time he met Degas, Manet had just begun painting Le Déjeuner sur l'herbe, and the following year he would complete Olympia. Manet developed his most iconic works alongside his copies, not separately. But can the copy be a masterwork in itself?

Copia


Degas’s and Manet’s Infantas share the same reference, but the artists’ renditions are distinct. In Manet’s picture, the girl faces left, and in Degas’s she faces right. She wears an expression of surprise in one and boredom in the other, and Manet’s firm, thick strokes are at odds with Degas’ lighter, cottony hand. The artists internalize and transmit their subject according to their own proclivities. This perspective is crucial in the copyist, but in this case it presents an interesting consequence. Both artists turned their drawings of the Infanta into etchings. Prints circulated faster and farther than the original in 19th century France, making their diverging versions more widely accessible to the public than Velázquez’s painting itself. José’s work is not for speed, but it cannot avoid pointing to our contemporary modes of copying and reproducing the image, too.


The word copy is connected to the way that humans produce and consume media through time. The Medieval Latin word copiare represents an era when information was spread by hand; it means to write an original text many times. After the printing press, the word copia came to mean abundance. Today, a copy is the thing and the action of making the thing (copying). Copying requires precision, but there is subtlety, too; we distinguish between the copier, which is always a machine, and the copyist, who is always a human. José is dedicated to painting as a craft and as a history. This makes his study of painting adulatory and impossible- materially, since the stuff of pigments and mediums have changed with time; technically, since the original artist’s hand and training cannot be cloned; and spiritually, since the socio-cultural milieu that produced the masterwork no longer exists. His paintings follow George Kubler’s description of copying in The Shape of Time (1962): “Copying is an hermeneutic task- understanding, understanding better than the original, understanding differently, or even demonstrating the impossibility of understanding.”


A Lens


Unlike Degas and Manet, José’s work with masterpieces is done not at the museum, but through photographs. Photography threw figurative painting into crisis, but it also brought our eye closer to the surface of painting than ever before. Made by a copier (camera), not a copyist (human), the photos are extreme details, crisp and precise. They allow José to study and reconstruct the original work’s strokes and colors with accuracy. But he is a copyist, not a copier, and so his process is infused with a sense of wonder. In Naples and Florence: A Journey from Milan to Reggio (1817), Stendhal writes about how “the contemplation of sublime beauty” (seeing the masterworks of Western art history) inspires in him “celestial sensations” and “a fierce palpitation of the heart.” José describes being overcome by a similar Stendhal Syndrome when standing before a small Richter portrait, a still life by Van Gogh, or one of Goya’s Black Paintings. This mixture of analysis and reverence, pleasure and mystery, is at the core of José’s work.

Old Light


While painting, José lives between past and present. Each piece is an apprenticeship between himself and the original work. His inquiry reanimates the source painting, and it speaks to him and us from far away. Kubler writes, “Knowing the past is as astonishing a performance as knowing the stars. Astronomers look only at old light. There is no other light for them to look at. This old light of dead or distant stars was emitted long ago and it reaches us only in the present. Many historical events, like astronomical bodies, also occur long before they appear, such as important works of art made for ruling personages. The physical substance of these documents often reaches observers only centuries or millennia after the event.” More than knowing the past, José enacts a physical engagement with it, retracing choices and compositions that were first made hundreds of years ago. When he places his new labor before us, he asks: What is the gap between knowing a masterpiece as an image and being in front of it as a real object?

We’ve seen José’s images on the internet, in a museum, or in the pages of a book. They are perennial, pervasive pictures, and we cannot avoid déjà vu. José’s paintings after Velázquez make us think of Velázquez himself, of the Spanish Golden Age when he worked, and of the artists who came before and after him. This chain of associations perfumes José’s paintings with the same ideas about museums, cultural patrimony, and western art history that his originals carry. But in José’s work there is the additional layer of the present moment. He catches us in actuality, what Kubler depicts as “A diamond with an infinitesimal perforation through which the ingots and billets of present possibility are drawn into past events.” In bright colors and fantastical flourishes, José infuses the masterpieces of Velázquez, Rembrandt, and others with mirages, holograms, and interferences that signal his presence, and our presence, in actuality.

Mirror


José’s work is close to its reference pictorially, and far away temporally. We cannot know the original creators’ intentions, but José’s paintings make us keep asking. As W. H. Auden wrote in his poem Musée des Beaux Arts (1938), “About suffering they were never wrong, / The Old Masters: how well they understood / Its human position; how it takes place / While someone else is eating or opening a window or just walking dully along.” So it is with Velázquez’s Bufones, a series of paintings which continue to be controversial. José was drawn to the pieces because of the figures’ gazes. Indeed, the faces of El Niño de Vallecas (1643), El Bufón Calabacillas (1639), and the others disconcert us. We become like the dwarf in Oscar Wilde’s The Birthday of the Infanta, who discovers the reality of his own reflection in a mirror for the first time: “He started, and taking from his breast the beautiful white rose, he turned round, and kissed it. The monster had a rose of its own, petal for petal the same! It kissed it with like kisses, and pressed it to its heart with horrible gestures.” Velázquez’s paintings break our hearts because we see ourselves in the bufones, but also because we will never be alike. The mirror reflects and deflects.

Carte Blanche


The court jester doesn’t belong in society; he is a freak. But the conditions that make him the subject of ridicule at court are also what give him a special power. As the embodiment of madness and impotence, the buffoon is given carte blanche to do and say whatever he wants. This is a freedom otherwise only felt by the king himself. The buffoon is absurd, the king is mighty. But as José says, “The buffoons are like mediums (mediúnicos); they know more than average people. They know what it means to be physically, and therefore spiritually, different. They are closer to the truth.” And there’s another carte blanche: the empty canvas before it’s touched. It could become anything; it could even become something that may already exist.


A Picture


A couple of months ago, José sent me a photo from his studio. The photo showed the artist standing in front of two of his giant bufones canvases in progress. The paintings were far bigger than José himself. The artist was simultaneously inside of the paintings- encompassed and engulfed- as he was creating them- his paints and brushes nearby. Thanks to José’s paintings, these masterwork images are no longer kept away from our physical experience, confined to the pages of books or computer screens. They are made tangible because they are extensions of his hand. José gives us the gift of a work’s presence in our moment, in our actuality. Existing inside of the work while making it is a dichotomy. It could be seen as impossible; it could be like seeing nothing. But for José, it means seeing everything.


Lauren Moya Ford for "Bufos" catalogue of the solo show at CCVF Guimarães, edited by CCVF

BOUQUET_ Lauren Moya Ford, 2016


How many people have cried at the Prado?

How many people, when finally placed in front of paintings they’ve seen for years in the pages of books and in their memory become so overwhelmed by the sensation of being physically with these artworks that they lose control of themselves?
I am one of those people.
I was a little girl in a big blue bow and black and white saddle shoes in a small schoolhouse in the Texas countryside when I discovered a deck of cards depicting famous paintings from Western art history. Gainsborough’s Blue Boy, Renoir’s lady at the piano, Rousseau’s desert sleeper - I examined these images one after the other, over and over. Each card contained another dimension where anything could happen. Were these places and things real, or were they imaginary inventions? Paintings were like a beautiful itch that I couldn’t quite scratch. Later on, I saw paintings from the cards projected in art history classrooms or, if I was lucky, hanging in museums. They were what I came to know as art’s masterpieces. Some of these very same paintings appear in the work of José Almeida Pereira. 
They say that Caravaggio lived such a violent and vagrant life because he was guarding a secret camera obscura that helped him create his lush, uncanny paintings. Seen by resentful contemporaries as an unfair advantage, the tool is ultimately worthless without a sensitive hand to capture and execute it. José has this hand. His paintings are immediately astounding in their technical virtuosity: in a series of skilled washes, marks, and surfaces, he seems to retrace the first artists’ footsteps. There is a double trompe
l’oeilhappening: not only is José approximating the painter’s imagery, he is also reproducing the material qualities of oil with acrylic paint. The elasticity and prodigiousness of José’s hand show his obvious pleasure in untangling a masterpiece’s technical puzzles, but there is more. His move from looking at a classic painting to re-creating it asks questions not only about how it was made, but why.

What is a masterpiece? The paintings in Panorama, and indeed the cards I discovered as a girl, come from a relatively narrow radius of geography and time. The paintings’ bejeweled ladies, hunting dogs, prisoners of war, and scientific tools show a Western European world defined by class reconfigurations, changing rites, incessant war, and a search for new knowledge. José chooses art historical images that resonate for him with the present day, and he describes painting from the original works as an extra-temporary act, a process that suspends time. It’s fitting, then, that the installation is in the shape of a zoetrope, and shares its implied circular action. Set together side by side in a close ring, the paintings’ angled surfaces form a dynamic embrace. The viewer is surrounded by figurations and preoccupations that are strange but familiar. In a word, the paintings are beautiful.
When I find something very beautiful, I often get a strange feeling of déjà vu. The first painting I saw by José was a bright bouquet of flowers in a glass vase. It looked familiar, like a face I’d seen before but couldn’t quite place. I later learned that the painting was based on a piece by Manet, although I’m still not sure if I’ve ever actually seen the original. José’s bouquet sets my mind abuzz for another reason: subtle color distortions on the edges of the forms keep me from getting a handle on the painting’s outlines and edges. The image is not stationary, and neither is the word bouquet. It is an attractively arranged bunch of flowers presented as a gift or as part of a ceremony; Panorama gathers José’s paintings together as an offering and artistic rite. In rarer usage, a bouquet is a compliment; José’s dedicated study of painting is at the very least a compliment to its legacy. Finally, bouquet is used to describe the characteristic scent of wine or perfume, something intangible and fleeting. And this bouquet is what I think José is most interested in.

Stepping into the installation, the visitor is hit by the intoxicating smell of paint and turpentine, painting’sprima materia. Scent memory may be the hardest to recall or define, but when it reappears it’s stronger than sight. What makes an artwork compelling? It’s a feeling akin to a forgotten scent suddenly resurfacing: it’s disorienting, entrancing, and brings out something hidden. These paintings aren’t copies, nor are they reproductions- those things are too hollow and static for what José does. Perhaps they are studies- the word implies devotion to detail and an imbibing of material in order to do something else with it.
“I feel free in choosing whatever image I want,” José says, “to me nothing is untouchable.” This act oftouching- to touch a masterpiece, to physically and mentally explore its reality through painting- is José’s concern. And part of a masterpiece’s reality is the gap between its physical presence- its technique and style- and its imaginary one- the memories and ideas we keep of it. The recollections and associations we carry with a painting put us in an extra-temporal plane when we see it.
But a painting does not have to be a masterpiece or even an original work to do this to us. The first painting I knew is a copy of a portion of Diego Velázquez’s Feast of Bacchus that’s been hanging at my grandmother’s small house outside of San Antonio, Texas since before I was born. My grandfather was a Mexican American World War II veteran working in Madrid, Spain in the 1950s when he met an artist in a bar and asked him to go to the Prado Museum and paint him the picture. He later commissioned the artist to paint two more Prado copies and to paint portraits of his children. Decades ago, my grandfather cared about painting. I never got to meet him, but he cared about painting, too. And so the small Velázquez copy hanging over my grandmother's kitchen showed me that painting really existed, and showed me a painted surface for the first time, but it also absorbed my memories and attachments about art and family over the years. Paintings are not just physical objects; they are emotional entities- shape-shifting, charged, and sometimes heavy. And so I will cry at the Prado.
“My hope in the act of painting is that something will happen- to create a painting that touches you, that you cannot be indifferent to,” José says. Through his painting, José offers a bouquet to arrange our thoughts and experiences on. It is a beautiful and generous gift.


Lauren Moya Ford for Panorama - solo show at Q22 at Colégio das Artes in Coimbra, 2016