Gosto de olhar para imagens dos pioneiros da modernidade no seu atelier: com grandes batas, imersos em espaços contidos mais ou menos arrumados ou caóticos, estes artistas parecem por vezes cientistas no processo de experimentação e verificação de teorias abstratas. Gosto particularmente de olhar para o modo como Piet Mondrian se deixava retratar - por vezes impecavelmente vestido num fato completo, noutras um pouco mais informal com a tal bata de pintor. Em todas as imagens o atelier é um espaço de organização meticulosa. Oscilando entre a racionalidade geométrica das composições abstratas e o ímpeto transcendentalista de uma teosofia que lhe servia de base e propósito últimos, Mondrian encarna na perfeição a ideia do pintor – cientista, algo que poderíamos igualmente fazer remontar aos processos alquímicos constitutivos da produção da cor da pintura pós-medieval.
Perdoar-me-á o José Almeida Pereira para tão inusitada imagem, mas quando olho a sua pintura não consigo deixar de o imaginar de bata branca a mergulhar na profundeza das camadas pictóricas que meticulosamente vai desvelando para formar as suas composições que têm vindo a glosar obras de arte de tempos passados. A prática mais recorrente aponta para um efeito de deslocamento retiniano onde a imagem–síntese recorda as imagens em três dimensões que requerem óculos especiais para a correta leitura da sua buscada profundidade.
Este deslocamento retiniano estrutura-se como fator fundamental da sua prática artística. Pintor virtuoso, aproxima-se, então, de Marcel Duchamp e dos seus famosos ready-made, onde se almejava a total indiferença estética (um urinol era, para este artista, um objeto de que nem se gostava, nem se deixava de gostar) e a quebra radical com a tradição retiniana de toda a pintura da época (nomeadamente a fauvista e cubista que ele chegou a praticar).
José Almeida Pereira propõe um paradoxo: sobrecarregar a imagem para nela estabelecer um território eminentemente conceptual. É no excesso retiniano que se percebe que aquilo que determina a sua qualidade está exatamente no plano da evidência da “ideia de pintura”, isto é, do seu lastro conceptual. Ciência do poder da imagem como demonstração performativa da sua falsidade, isto é, da reiteração da sua artificialidade constitutiva. Não mais “janela para o mundo”, mas sim passagem por estádios desconstrutivos – sendo um deles a sua digitalização- que se vão recompor nas saturadas imagens finais que agora se apresentam.
Estas remetem para pormenores observados nos diferentes contextos das empresas do Grupo RAR que são captados por via mecânica (fotografia e vídeo) para serem depois tratados em programas de tratamento de imagem computadorizados. Declinando a observação direta da natureza e da maquinaria representada, o filtro que diligentemente instituí é uma alicerce fundamental para comentar os estados flutuantes da perceção, nomeadamente dos que tradicionalmente educamos no modo de entender a pintura. A disciplina expande-se, então, como campo de possibilidade tecnológica de uma representação outra, que se ancora num território de visibilidade saturada e tensiva, criando um paralelismo com a rapidez das imagens que contemporaneamente invadem o nosso cérebro. Pintura de hoje, portanto, a apontar para o futuro.
Miguel von Hafe Pérez