A PINTURA ENQUANTO DESACELERAÇÃO_ Ivo Martins, 2017


I–

Depois de rever algumas das obras do José Almeida Pereira, a palavra crise vem à mente. Termo recorrente em jornais, televisão ou conversas de café, esta designação tem atualmente um significado diferente daquele do passado, estando centrada nas dificuldades económicas, problemas com a inflação, queda na procura, falta de liquidez, novos impostos, cortes nas subvenções ou despesas públicas, etc. A crise abrange toda a vida contemporânea – incluindo naturalmente a arte – e com o passar do tempo tem vindo a perder o seu sentido original. Crise, em grego – krisis –, possuía diferentes aceções que variavam segundo os autores. Em Tucídides era sinónimo de “contenda” ou “disputa”; em Platão representava um padrão, donde provinham critérios que funcionavam como base para se julgar, embora nas obras deste filósofo também fosse usada como habilidade para discernir. Da crise derivava acima de tudo o sentido crítico, isto é, um processo base para se realizar um julgamento. Hoje, qualquer acontecimento adverso, incompreensível, estranho ou violento é mediaticamente considerado como sintoma de uma crise. Representando uma atribuição completamente despersonalizada que serve para alijar responsabilidades, a crise adquiriu uma conotação estranha e esquiva, não conseguindo escapar aos chavões e às uniformizações do pensamento sistémico e acabado, transformando-se numa entidade abstrata, vagamente sinistra, que rege o mundo e a vida das pessoas.

Esta deformação, de certo modo fictícia, simboliza a enorme solidão do homem pós-moderno. Nesta ideia de crise não há solução nem conclusão. Assim, não é possível preparar o terreno para se fazerem novos ajustamentos, refinando estratégias, atacando os problemas com a certeza de que se irá conseguir recuperar a segurança perdida. O vigor das forças em presença não são controláveis e o homem é incapaz de reequilibrá-las. A crise atual é realmente diferente das anteriores porque exige mudanças radicais no sistema. Será possível alterar este modelo de vida, assente no consumo intensivo de bens? As anteriores crises eram passageiras e foram resolvidas com intervenção do Estado através de políticas de criação de emprego e dinamização da economia.
No capitalismo global, os países estão demasiado endividados e economicamente enfraquecidos para poderem investir em obras públicas como sucedeu no passado. No fundo, a economia passou a ser governada pelas leis do mercado, uma entidade abstracta que monopoliza e impulsiona o crescimento a uma velocidade nunca até aqui experimentada. O consumo suporta um sistema económico que usa todo o tipo de estratégias para se manter em permanente aceleração. Neste sentido, a crise atual já não desencadeia sentimentos optimistas em relação ao futuro nem estimula o aparecimento de modelos criativos ou de rutura tendo em vista melhorar o bem-estar.

Depois de se chegar à conclusão que é impossível escapar às consequências da crise e que ela está presente no nosso quotidiano, isso também influencia as atividades artísticas. Tentemos analisar os seus efeitos no domínio da arte, expondo algumas das suas manifestações. A arte atual vive numa sociedade em permanente crise, sendo difícil contrariar a tendência mercantilista que abrange todas as atividades humanas. A essência de qualquer atuação artística deveria fundamentar-se na abordagem de pontos críticos culminantes que relevassem as fraquezas e incoerências do sistema político, social, económico no qual está inserida. Sem o contraste dialéctico entre a negatividade da arte e a positividade do sistema que transforma em mercadoria todas as coisas, não se consegue distinguir as obras de arte das demais atividades produtivas. Sem sentido crítico, [a arte/o artista?] facilmente se deixa enredar num discurso de crise global que tudo abrange, dirige e influencia. Assim, muita da arte que se faz hoje é desprovida de um aprofundamento crítico e torna-se parte de um fluxo imagético quotidiano que promove, incentiva e glorifica o consumo. Raramente as suas manifestações são fortes na negatividade, no pessimismo, na denúncia, pelo que não envolvem mudanças ou renascimentos significativos após cada ruptura. Em resumo, nada na arte contemporânea supõe um sentido de maturação, desaceleração da experiência criativa, uma escolha ponderada e demorada, lenta decisão. Tal como a discordância, divergência ou oposição: a arte deixou-se levar na grande vaga consumista que tudo arrasta. A crise que no passado simbolizava um elemento discrepante que exprimia vontade de mudança foi amestrada, levando consigo a arte que agora faz parte do espetáculo dos media. Porque já não há mudança possível, a omnipresença do mercado torna-se cada vez mais patente no impasse económico em que a sociedade se encontra mergulhada.

II–

Apesar da “gaiola de ferro” que é o capitalismo – como Max Weber referiu –, no qual as pessoas estão aprisionadas, alguns artistas resistem e insistem na velha atividade de pintar. Nesta insistência afirma-se a crença num certo tipo de conhecimento. Desse modo, pode perguntar-se qual o tipo de impulso que leva os pintores a persistir no trajeto aberto por uma prática artística arcaica. Talvez esta forma de agir contenha uma estranha atitude crítica porque, sendo lenta tanto no seu processo de produção como nas exigências de conhecimento e controle técnico, simboliza uma declarada recusa da velocidade do mundo atual.
Ainda assim, parece que um pequeno grupo de indivíduos, minoritário e escasso, busca na pintura um processo de afastamento da torrente da arte enquanto espetáculo e realiza um tipo de ascese, envolvendo-se com o passado. Recusando uma realidade saturada de estímulos imagéticos, este pequeno núcleo de pintores segue os passos de tantos outros artistas fulcrais na história da arte. Neste sentido, é também possível entender-se a pintura como manifestação de carácter afirmativo num contexto difícil e inseguro, saturado de imagens e de discursos, onde dispositivos tecnológicos de elevada sofisticação controlam os processos audiovisuais para assimilação individual. O ato de pintar pode ser entendido como recusa, desacordo, negação, censura, confronto, desvio. Pintar, nos dias de hoje, deve ser entendido como afirmação de um território anónimo, íntimo e pessoal. Este território também se localiza nas zonas abandonadas pelo sistema produtivo: as periferias, as fronteiras ou os espaços urbanos vazios representam a obsolescência dos excessos produtivistas.

A pintura, apesar de estar bastante cotada no mercado global da arte, apresenta zonas vazias de intervenção criativa. O artista pode tirar partido das fraquezas do funcionamento do sistema, explorando as áreas de atuação deixadas ao abandono pelo processo seletivo através do qual o mercado impõe as suas tendências. Como afirma Byung-Chul Han em O Aroma do Tempo – um ensaio filosófico sobre a arte da demora, “o fazer humano ao perder a sua dimensão contemplativa degrada-se em pura atividade e trabalho” (citar?). A pintura poderá tornar-se numa das poucas formas de contemplação e desaceleração num mundo cada vez mais apressado.
Ao pintar, o artista nega a velocidade de um universo regido por entidades dispersas, sem conexões equivalentes, pouco livres e autónomas, embora dominem e controlem com o seu olhar acutilante e vigilante todas as imagens produzidas. O termo pintura é em si mesmo um conceito problemático: hoje, a imagem pintada não possui a mesma carga simbólica do passado e as qualidades da pintura só muito raramente se encontram reunidas num único corpo de trabalho.

Pretendemos defender a pintura e o dom do artista, isto é, esse impulso de usar as tintas como meio de expressão para exteriorizar coisas da sua imaginação. A partir da experiência da visão pode inferir-se que qualquer pessoa está sujeita aos condicionalismos de um terreno movediço, volúvel e difuso, no qual todo o tipo de explicações são legítimas e aceitáveis. Desde a mera observação in loco à projeção luminosa na imaterialidade de um écran, o seu campo de interação com o real é vastíssimo; atualmente, tudo pode ser combinado, numa torrente de imagens sobrepostas que se repetem à exaustão. Com os avanços tecnológicos que criaram dispositivos de captação e reprodução, a pintura tornou-se presa fácil da imagem, sendo difícil escapar à sua banalização: o digital que se sedimenta em ficheiros de alta resolução; obras-primas da história da arte que se disseminam pixelizadas em poderosos motores de busca. A descrição, organização e sistematização das experiências sensoriais dos observadores, contidas nos grandes livros da história da arte, está em decadência num mundo onde tudo se atomiza sem princípio nem fim. É difícil o papel da crítica [?] num território com estas características, onde as imagens e objetos de arte formam um espaço algo caótico e sincrético, de uma fragilidade evidente. A arte contemporânea está saturada de discursos e explicações que nada acrescentam. As explicações interpretativas tanto podem conter avanços como recuos relativamente ao que foi percepcionado noutras ocasiões anteriores. Numas situações registam críticas consistentes, noutras narrativas absurdas, geradas pela visualização comparativa entre diferentes etapas de criação na pintura. Isso traz vantagens e desvantagens na compreensão da força gerada pelas imagens: se nuns casos se atiram as referências da pintura atual para um limite além do atingível, onde tudo parece esgotado, noutros este estado de exaustão desincentiva o trabalho de pesquisa, convidando as pessoas a desistirem de procurar. Por causa desta desistência as reflexões sobre as imagens da pintura atual tendem a ser iguais e uniformes, registadas em análises e explicações redundantes.

O que sobressai nesta exposição é um processo de fé, uma humildade de se acreditar no que se fez e na possibilidade de se voltar a fazer. Nesse sentido, é negado o discurso dissuasor que convida à passividade e, em última instância, a não pintar. Através de um trabalho persistente e lento, o artista vislumbra um horizonte onde sente haver espaços de criatividade ainda por perscrutar. Todo o indivíduo que cria neste início de século tem de experimentar e sobreviver num clima de esgotamento em que tudo parece repetir sem nunca estar concluído. O artista está indefeso face a uma realidade que o empurra para a ação e para o trabalho, descuidando a contemplação e o pensamento. Conseguir criar peças verdadeiramente originais ou singulares corta a ação porque imaginar pressupõe parar. Num mundo acelerado, esta necessidade de abrandar e contemplar persegue todo o artista como um fantasma, uma má sorte que o faz duvidar da utilidade e pertinência da sua obra. Começar uma busca libertadora através da pintura indica que a ação deve conter momentos de interrupção para não ser consequência de trabalho. Agir desconhece a dúvida. Assim, o artista deve duvidar pois quem não é capaz de duvidar torna-se trabalhador, isto é um homo laborens. 

A pintura de José Almeida Pereira invoca a contemplação, contra um futuro entendido como continua exigência de ação. Pelo facto de remeterem para o passado, estas obras interrompem a repetição do sempre igual cuja atividade é empobrecedora e permitem ao observador ter uma certa experiência, deixando- se afectar, implicar, comprometer, transtornar, transformar. É inegável que o artista possui um talento natural para a pintura e as energias geradas por esse talento constituem um problema que ele tem de resolver. O mesmo acontece com o escritor, com o músico, o escultor, o coreógrafo, o performer, que para escaparem ao domínio do tempo e da vida ativa têm de buscar uma certa forma de quietude. As obras em exposição reconfiguram momentos de vida contemplativa onde tudo o que existe no exterior parece ser inimigo e conjugar- se para incentivar a vontade de trabalhar. O autor encontra-se envolvido numa múltipla solidão. A sua, que lhe é própria, única e intransmissível e que, sendo impossível de se comunicar por palavras, assume-se num estar sozinho no meio de muita gente, criando espaço para se entregar a si próprio. Nas suas obras ele respeita o legado da pintura e corajosamente integra uma corrente de artistas que desde sempre desenvolveram esse meio de expressão, exprimindo dúvidas, inseguranças, formulando tentativas de superação pessoal relativamente aos condicionalismos do seu tempo.

Um quadro bem executado – e principalmente quando é figurativo – suscita sempre curiosidade sobre quem ou aquilo que o causou. No entanto, é razoável perguntar-se como reagiram às obras-primas os indivíduos de diferentes épocas. Teriam a mesma capacidade de as julgar e distinguir o que era fruto de uma ação propositada daquilo que era acidental? As obras-primas são fiáveis indícios de talento, encerrando interrogações que perduram no tempo. Por outro lado, o pintor é um ser humano, um homem entre muitos que se esforça por se diferenciar, movido pela sua visão pessoal. O indivíduo que agora retoma as imagens das grandes obras do passado é diferente, pois coloca nelas muito mais informação e usa conhecimentos técnicos que o desviam da sua função de artífice. Assim, o trabalho produzido tem de ser obrigatoriamente diferente por razões endógenas e exógenas à arte. O que se pode observar nas obras vai muito para além do padrão estabelecido pela pintura original. O artista encontra-se perante si e todos os outros que no passado realizaram as mesmas ações. Neste sentido, na atividade de qualquer autor há sempre um misto de atrevimento e de humildade: no atrevimento o artista deseja distinguir-se dos restantes seres humanos, exacerbando a sua dimensão egocêntrica; na humildade o autor despoja-se desse egoísmo, arriscando tudo na obra, pois ignora se vai ser bem sucedido.

O pintor, como todos os homens, sente que não possui meios de expressão para descrever o que faz, sendo incapaz de explicar o trabalho que realiza. As palavras atraiçoam e são sempre insuficientes. Assim, o artista refugia-se na fragilidade das imagens, submetendo-as a um jogo visual que ele próprio inventa para contactar com o observador. A pintura de José Almeida Pereira desenvolve esse jogo e propõe diferentes abordagens e olhares sobre importantes obras da arte ocidental. Pode considerar-se que estas pinturas se assumem como arquétipos, uma base de criação a partir da qual o artista intervém. Nuns casos despojando- as dos seus pormenores identificativos, noutros acentuando-lhes os elementos cinéticos nelas inscritas. Assim, em algumas obras detetam-se espectros fantasmáticos que remetem para o facto real inscrito num quadro famoso de um autor de uma época e tradição anteriores. Alguns elementos dessas obras destacam-se do quadro original, encetando uma dança captada por uma câmara lenta imaginária que decompõe a imagem em sucessivos planos sobrepostos e transparentes. Noutras situações, o artista deseja desestruturar o que se vê com o intuito de colocar a descoberto os efeitos ópticos decorrentes da tridimensionalidade das imagens. Divide-se o espaço em sucessivos movimentos que esvaem a figura humana e o espaço envolvente numa liquefação enleante.

As obras assim produzidas são sínteses aproximativas às obras-primas que o pintor reconstrói de forma livre e lúdica. É interessante perceber que apesar das diferenças e deformações efectuadas, as obras mantêm o seu grau de identidade, indicando que a memória do observador também realiza idênticos processos de simplificação e síntese. Assim, pode dizer-se que o artista se limita a reconfigurar quadros antigos já sobejamente assimilados pelo inconsciente coletivo. Os trabalhos do pintor reinventam essas formas dando-lhes nova vida, sem se verificarem fortes perdas na sua identidade simbólica, provando que a memória visual é bastante seletiva. Estabelece ainda padrões cromáticos e formais, sem a necessidade de se definir uma grande nível de pormenorização e o trabalho exposto explora esse mecanismo de identificação assente na poética da arte.
Ao realizar estas citações sobre velhas imagens de importantes obras de arte do passado, o seu trabalho penetra numa nova esfera de referências simbólicas, aproximando-se da dissonância comunicativa. Cada troca de mensagens acontece numa superfície imagética em constante mutação, caracterizando-se pela aleatoriedade e descontrolo dos processos interpretativos. Atualmente, os olhares habituaram-se a fixar-se durante curtos espaços de tempo, em rápidos esgares sobre os instantâneos audiovisuais que invadiram a vida do observador, sujeitando-o à fragmentação e dispersão dos acontecimentos. O olhar já não consegue serenar nem permanecer quieto. Os estímulos aparecem e desaparecem em sucessivos pontos culminantes, substituindo-se mutuamente.

Em sentido inverso, a pintura de José Almeida Pereira impõe uma zona de observação adversa à velocidade, donde sobressai a lentidão do seu processo criativo. Penetra num território desestruturado e algo caótico, amplamente explorado por dispositivos mediáticos de comunicação, destruído em muitos dos seus aspetos pela imagem tecnológica que banaliza e estandardiza o real. Só um espírito despojado de interesses poderá ultrapassar estes condicionalismos conjunturais que tornam a arte actual refém da crise permanente inscrita nas lógicas de mercado. Por isso, quantas vezes o artista é levado a ter de falar sobre o seu ofício, como se fosse um profissional em relações públicas. Apesar de sentir que não tem nada a dizer é obrigado a fazê-lo sob pena de desaparecer. A comunicação exige a produção de narrativas que nem sempre são o melhor meio para justificar a pertinência de uma obra. A necessidade de se ser agradável com o público torna as intervenções dos artistas momentos de teatralização ou representação e percebe-se o artificialismo do discurso porque na verdade não há nada para dizer. No entanto, numa época saturada de mensagens, a falta de explicações cria graves vazios de poder. Hoje as imagens já não precisam de possuir legendas para ter vida própria. Elas entram num circuito global de propagação e divulgação, dispersando-se, fragmentando-se, metamorfoseando-se em lugares comuns, clichés e coisas vulgares que, sucessivamente repetidas, fazem acreditar na sua utilidade. 

Nada pode ter consistência quando o que se vê está condenado a desaparecer. A existência é muito mais do que um mero jogo de espelhos onde tudo se liquefaz através de cada repetição. As imagens correntes são relâmpagos, disparos fugazes de uma realidade iluminada, manipulada por rápidos efeitos de luz mediática, numa sucessão de casos e de novidades. O que se vê são séries de imagens apressadas que se iluminam e apagam imediatamente uma após outra.
Contra a fugacidade do tempo, José Almeida Pereira incita a imaginação do observador e convida-o a demorar-se no espaço sensível da sua imaginação para escapar à luz estroboscópica das imagens. As temáticas abordadas nestas obras fazem um retorno aos valores humanos inscritos na pintura, distanciando-se do presente e assumindo esse recuo. As pinturas apresentam-se em camadas de tempo, no contraste entre o preto e branco, o negativo e o positivo, como se se tratasse de uma imagem fotográfica. Cada obra dá ideia de sobreposição, de sedimentação, de trajeto, de um tempo expresso num espaço. O que se observa são simples espectros, pequenos vestígios, rastos de um conjunto de imagens que teimam em permanecer para sempre na memória. Num tempo onde a imagem é comunicação, a sua fixação na retina não é todavia suficiente para formar conhecimento. Desse modo, a obra-prima citada em cada pintura demora-se porque se fecha no olhar como um segredo. A exposição sugere as dificuldades e problemas de um homem pós-industrial, solitário que, sujeito a bombardeamentos intensivos de imagens manipuladas, não tem tempo para distinguir as falsas das autênticas. Nas apreensões apressadas de uma realidade dispersa e dividida, qualquer pessoa é facilmente iludida. O que se vê e escuta é o trabalho de complexos dispositivos tecnológicos a emitir sem cessar, criando uma corrente tão forte e continuada que dá a sensação de se ter constituído uma narrativa congruente. Apenas quando se desliga a aparelhagem é que se verifica o engodo.

As camadas de tempo e de espaço vão-se dispondo nas obras expostas como evoluções da perceção. O artista, com a consciência do nível de intervenção tecnológica a que tudo está submetido, produz imagens seccionadas, fraturadas, ligadas em movimentações aparentes. Com esta forma de percepcionar o que o rodeia insinua maneiras provocatoriamente lentas de trabalhar, relevando os cortes de continuidade provocados pelas visões fragmentadas dos equipamentos sofisticados que as captam, tratam, armazenam e difundem. Face a esta realidade, tem de forçosamente optar por vias de expressão difíceis que deformam a imagética corrente. Hoje, a passividade e o silêncio das imagens é uma forma de intervenção sabotadora de que o artista se serve para negar a velocidade dos processos criativos contemporâneos. A passividade e o silêncio muitas vezes simbolizam uma vontade de afrontamento mais intensa e plena. Através de um processo de diálogo comparativo com o passado, o conteúdo destes quadros expõe as debilidades da imagem atual que, sendo intermediada por dispositivos tecnológicos potentes, perdeu muita da sua densidade ontológica, fazendo aflorar de uma maneira ostensiva o superficial a frivolidade, o ligeiro. Face ao que se produz atualmente, os quadros de José Almeida Pereira sabotam processos artísticos não dizendo ou não fazendo o que os outros esperam e, sem arrependimentos, a sua pintura celebra essa recusa. Coloca-se assim contra uma estranha avidez por palavras, embora na maioria dos casos nada se aprofunde.

III –

A sociedade produtivista relega diariamente para a lixeira inúmeras coisas descartáveis, factos inúteis que formam torrentes de casos e de notícias. É também nesse sentido que Zygmunt Bauman fala de uma sociedade líquida, na qual domina o que é facilmente substituível, em detrimento do que se pauta pela duração e resistência. Desse modo, tudo o que não seja susceptível de criar prazer, satisfação e entretenimento imediato não tem interesse. A pressa do mundo comunicacional arrastou a imagem para processos de aceleração criativa e a pintura figurativa, dada a sua natural lentidão, tem vindo a perder espaço. Por isso, a sua prática é cada vez mais marginal e periférica, tornando-se um forma passadista de criação quase em extinção. É evidente que continua a existir mercado para essa atividade artística. No entanto, sente-se que depois da segunda metade do século XX a pintura tem sido desconsiderada e menorizada, porque se acredita que pode ser substituída por fórmulas de construção mais leves, flexíveis e espetaculares. Como se fosse possível trocar certos buracos negros que a linguagem não consegue exprimir por divertimentos hedonistas. A comunicação ininterrupta devassou o espaço subjetivo, expondo em tempo real e de forma obscena a esfera íntima. Tudo serve para produzir espetáculo e para divertir as multidões.

A simples digressão ao passado, à herança cultural de qualquer sociedade, pode ser encarada como uma atitude nostálgica. Contudo, o que se sente nos trabalhos de José Almeida Pereira não são manifestações saudosistas. Não são divagações ou especulações retroativas na busca de um paraíso perdido. Marx dizia que a repetição histórica de um acontecimento importante dá origem a uma farsa e isso passa-se com algumas tentativas de hipotéticos retornos ao passado da arte. Não é com restauros simulados ou simulacros de reparações que se recupera o tempo perdido ou se resolvem os problemas da arte contemporânea. É necessário algo mais, uma dimensão experimental que alargue o alcance da mente e fuja a uma arte retiniana. Só este facto poderá despertar consciências e fazer perceber que as coisas, sendo irrepetíveis, podem no entanto estabelecer novas pontes de apreensão entre passado, presente e futuro.
Antigamente, a violência e a brutalidade estavam muito mais presentes no quotidiano das pessoas e as obras de arte absorviam essa realidade. O ambiente predatório dessas sociedades gerava medos e inseguranças. O público sempre apreciou demonstrações de habilidades e necessita de ser confrontado com coisas estranhas e bizarras. A memória cultural pacifica o passado das sociedades, empalidecendo as recordações das suas origens sangrentas. A arte feita no passado reflectia um ambiente acintosamente violento, estando repleta de indícios de perversidade e agressividade.

O que as sociedades antigas tinham de incomum relativamente às de agora era a dimensão do seu choque ideológico, a temeridade face à força dos costumes, registando ousadias, atrevimentos, sobrancerias, coragem. No arcaico, o clima de violência coexistia com um saber fazer ancestral que levava os artistas a arriscar as suas vidas por causa das temáticas abordadas. Neste momento, as pessoas ao guiarem os seus comportamentos por mecanismos de imitação em série, constroem realidades feitas de factos vulgares, momentos inúteis e lugares comuns, assentes em narrativas incoerentes que se entrecruzam através de diferentes dispositivos de propagação de mensagens. Contudo, no interior deste mundo, surge alguém que consegue afastar-se destes momentos, recolhendo-se e pintando quotidianos inscritos nas imagens do passado e que os recupera com os olhos postos no futuro.

Ivo Martins para o catálogo "Bufos" editado pelo CCVF, aquando da exposição homónima no CCVF em Guimarães