Permitam-me que partilhe aqui dois episódios da minha vida profissional antes de abordar de modo mais direto a exposição do José Almeida Pereira. O primeiro passou-se há mais de vinte anos. Uma instituição museológica nacional convidou-me para escrever notas biográficas sobre mais de cinquenta artistas do século XX para um catálogo seu. De Picasso a Rothko, de Vieira da Silva a Warhol, a tarefa acabou por se revelar hercúlea, pois resumir numa página a vida de um autor ao mesmo tempo que se esboça um laivo de comentário histórico-crítico sobre o respetivo percurso é, na verdade, um exercício de rigor e concisão muito difícil. O museu não sabia bem como quantificar o valor desse trabalho e disse-me para ser eu a propor os honorários. Inocente, cobrei uma quantia que olhando para trás era verdadeiramente ridícula face à quantidade de trabalho que tinha tido. Pasme-se com este detalhe: vim a saber mais tarde que o tradutor desses meus textos cobrou mais do que eu! Neste mundo desregulado da cultura os artistas e os autores não sabem, definitivamente, defender-se. Já os tradutores, por exemplo (e já agora os designers gráficos) são muito mais assertivos no modo como tabelam os seus preços – daí também já me ter acontecido ter sido pago menos de que o designer de uma publicação de uma exposição da qual fui comissário (e tenho a certeza de que isto já se passou com outros colegas meus).
Segundo episódio: quando fui diretor do CGAC, em Santiago de Compostela, comissariei uma exposição intitulada 93, com mais de cem artistas internacionais. Para a sua montagem vieram vários assistentes de artistas muito famosos montar as respetivas obras. A certa altura, estava numa das salas de exposição e olhei para duas pessoas a trabalhar. Um era o assistente de um artista que tinha vindo mediante uma tabela de honorários que o estúdio desse artista tinha fixado (e que, diga-se, eram bem generosos…). Ao lado, um artista inglês meu amigo suava a refazer uma espécie de pintura mural de 1993. De repente gelei, pois apercebi-me que por esse trabalho não estávamos a pagar nada, para além dos habituais per diems, viagens e acomodação. Ou seja, uma situação surreal, que imediatamente tive de corrigir, não sem antes que os burocratas financeiros que geriam o dinheiro do museu esperneassem violentamente. Ou seja, admite-se mais facilmente pagar a um “técnico” que trabalha para um artista, do que ao próprio artista.
Servem estes dois episódios para ilustrar uma das questões centrais na atual proposta expositiva de José Almeida Pereira. Distópica e complexa nos seus pressupostos, a proposta conduz o espectador em direções à primeira vista incongruentes. A pintura deste autor reinterpreta momentos diversificados da história da arte, com estratégias formais distintas e cuidadosamente articuladas. Na referência a obras de Tiziano (Sísifo, 1548-49), Vermeer (A Leiteira, c. 1657-58) e Millet (As Respigadoras, 1857), o artista escolhe com precisão temas que se associam à questão da representação do trabalho, tanto na sua vertente pragmática, como mitológica. A oscilação entre essas realidades ecoa no modo como as pinturas são reinterpretadas, naquele que tem vindo a ser um idiossincrático modus operandi, isto é, num desfasamento associável à representação 3D, onde a profundidade só seria apreendida com os respetivos óculos. O efeito hipnótico conseguido é um contundente comentário sobre o modo como hoje em dia rececionamos as imagens, na maior parte das vezes num segundo grau distanciador e enganador. Na qualidade exímia desta pintura pressentem-se horas e horas de trabalho de precisão extenuante. Assim, tema e forma fundem-se num magma conceptual que se ancora enquanto exercício crítico sobre o próprio ato de pintar.
Já nas obras sobre vidro, José Almeida Pereira remete para as formas do primeiro modernismo, nomeadamente da pintura engajada do período revolucionário russo. Aqui a serialidade, a rarefação geométrica e formal remetem para a busca de universalidade de uma linguagem substitutiva de velhos e anacrónicos códigos representacionais que se identificariam com o “antigo regime”. O nivelamento da prática artística enquanto responsabilidade coletiva correspondia à descoberta de um vocabulário totalmente novo, ao qual a sociedade responderia com um novo modo de habitar o mundo, com uma mudança de paradigmas comportamentais, políticos e sociais. Todos sabemos como acaba a história: as preocupações propagandísticas eram demasiado urgentes para que a assimilação desse novo vocabulário visual se tivesse verdadeiramente podido impor. O realismo socialista correspondeu ao reverso abjeto da utopia vanguardista. Ficou, no entanto, esse lastro utópico (mais tarde tentado na germânica Bauhaus) de uma equivalência das disciplinas artísticas, na imersão qualitativa e quantitativa dessas propostas no quotidiano.
Ao referir estes momentos históricos José Almeida Pereira questiona não só o valor associável ao trabalho artístico, como também o valor que esse trabalho detém no seio de conjunturas histórica, social e geograficamente definidas, nomeadamente na sua receção e no seu valor-uso. A opacidade na aferição destes parâmetros é aquilo que define a nossa civilização ocidental, moderna e contemporânea. O grande problema é que aqui não existe um exterior. Seja marginal, seja herói reclamava o artista brasileiro Hélio Oiticica numa obra de 1968. Tarefa tão impossível quanto desejável nos nossos dias, dir-se-ia. No entanto, acabam por ser refrescantes os momentos em que somos obrigados a olhar-nos no espelho e sentir que a imagem devolvida não corresponde a um reconhecimento pacificado. É esse o maior mérito de José Almeida Pereira.
Num segmento adicional da exposição, este orquestrador de situações, como me apetece descrevê-lo, convidou dois artistas a colaborarem na sua proposta. Índice de uma troca simbólica alternativa ao “pagamento” convencional, nele se aduzem elementos de estranheza vital que acabam por reverberar no leitmotiv que subterraneamente percorre a mostra. A escultura de Cristina Regadas não só parece fantasmagoricamente materializar a pedra que Sísifo punitivamente carrega, como remete para uma estratificação paleontológica que condensa diversos materiais associáveis a vários tipos de trabalho, sendo o cimento, material moderno por excelência, o aglutinador. Já nos vídeos de Max Fernandes o curto-circuito entre a imagem manipulada, a escrita e a manualidade do desenho sobre um fluxo imagético filmado no seu atelier, num dos vídeos, e as síncopes soporíficas ou ativadoras de um estado de transe no outro registo, acabam por igualmente referir o estado “fordiano” da produção, mesmo que a artística, por mais que se disfarce de unicidade, intemporalidade e se valide por via da autoria.
José Almeida Pereira sabe que facilmente poderia singrar numa economia de mercado por via das suas qualificações e dotes técnicos. Esperemos que nunca veja F for Fake de Orson Welles, caso contrário até se poderia entusiasmar com a glamorosa vida de falsificador profissional de sucesso. Felizmente para nós escolheu a via da dúvida e da inquietude. É sempre preferível um rebelde a um acomodado. Dá mais trabalho, a ele e a quem observa, certamente, mas essa é uma urgência contemporânea.
Folha sala da exposição individual (com participação de Cristina Regadas e Max Fernandes) - Simulabor - Galeria Graça Brandão, 2017