A aura do quotidiano

O latim tem duas palavras para luz: lux, a luz divina, o esplendor do ideal; e lumen, a matéria-luz, a luz como fenómeno físico, mas também a abertura por onde a luz entra — lembrando aquele célebre e belíssimo aforismo de Leonard Cohen, “there is a crack in everything, that’s how the light gets in”.
Apercebi-me desta partição semântica ao ver um documentário sobre os vitrais das primeiras catedrais góticas, que trouxeram ao escuro interior dos templos uma atmosfera mística. Pretendia-se que o brilho do sol, filtrado pelos vidros coloridos, inundasse os crentes de temor e vontade de louvar a Deus. Mas é certo que este enlevo do espírito resultava de um trabalho intensamente físico, de destreza manual: artistas desenhavam as cenas representadas, artesãos coziam e modelavam o vidro, colavam com resina os pedaços coloridos, encaixavam os vitrais. Obtinha-se assim, com matérias vulgares trabalhadas exaustivamente, uma aura transbordante, encantatória, que pairava sobre as orações pobres e quotidianas dos homens.

Penso neste antigo ofício de apreensão e domínio da luz a propósito da pintura de José Almeida Pereira em “Pletora”. De novo será útil recorrer ao dicionário: pletora, em botânica, é a “produção anormal e excessiva de seiva que provoca produção anormal e excessiva de folhas”. Nas pinturas de “Pletora” esse excesso desviante das forças orgânicas, esse assumido mimetizar das seivas e dos fluidos que transbordam sobre as tintas do quotidiano criam, arrisco dizer, um efeito aurático e expansivo semelhante ao da luz coada pelos vitrais. Trata-se aqui, é claro, de uma aura terrena, bem suja e terrena, como o halo de cores numa mancha de óleo. Luz-matéria, mas ascensional.

Partindo da ‘pobreza’ das fotografias que tirou com o telemóvel durante os passeios pela natureza com a companheira e o cão, o pintor propõe-se recriar o que viu, trabalhando o olhar e o registo, sempre insuficientes, até que o excesso e um certo efeito refractivo lhe devolvam a impressão de vida vivida, plena, real — algo que as imagens do telemóvel ou o próprio olhar nu nunca lhe poderão dar. A vida não chega, parece dizer-nos “Pletora”. A vida só por si não faz justiça à vida, para isso é preciso a efabulação, a reelaboração, o obsessivo retorno àquilo que se ama mas que ainda não nos revelou inteiramente a sua essência. É preciso a mística, ou a arte.
 
A gestualidade abundante de José Almeida Pereira, elástica, tensa, discretamente sísmica, cheia de pequenos e reiterados tremores, pressentimentos, desfasamentos que raiam a estereoscopia, parece situar o que importa do quotidiano no plano da arte, quer dizer, da transfiguração. Se no seu trabalho anterior se tratou sempre de problematizar as propriedades auráticas das grandes obras da arte ocidental, de fazer-nos hesitar perante a própria ideia de aura, agora empreende-se o movimento inverso, o de conferir uma aura ao que quase já não a tem, o quotidiano — o do pintor, o nosso — quando tudo insiste em enlameá-la. (E quem teria agora tanta certeza, como o poeta sem auréola de Baudelaire, de que há males que vêm por bem?).

Devolvendo ao mundo o seu poder sensorial, os seus brilhos e texturas, os seus abismos, mistérios e pequenos milagres, “Pletora” desterritorializa, evoca, seduz (que faz ali um chapéu oriental? em que gestos se desdobra? a que época e país pertence?) Não negando nem a angústia nem as propriedades liminares e ferinas do real (será uma mulher ou uma camponesa, uma figura ancestral? será um simpático canis vulgaris ou o pêlo ruivo de uma raposa?), estas pinturas retomam um impulso primeiro do acto criativo, o que é tanto mais ousado e inteligente quanto mais o nosso tempo se armou de cinismos e segundos graus. O que aqui vemos é a abundância inquietante e celebratória da pintura, a multiplicidade dos seus gestos e rituais, o quotidiano enigma que lhe dá origem.

A alegria, portanto. A insistência na alegria e no louvor daquilo que se ama — a companheira, o cão, um simples passeio de domingo —, na suspeita de que tudo isto só pode permanecer, ser salvo, se o olhar que contempla o transporta e retém noutro plano, noutra dimensão. Um pouco mais de luz, um excesso de luz e de seiva, parece pedir-nos esta pintura. Um pouco mais de tempo além do mero tempo humano, ou seja, quase a eternidade.

Andreia C. Faria 
Texto para a exposição: Pletora - individual na Galeria Kubik, Porto, Janeiro de 2024