Pensava Jade

Pensava Jade(1) que tinha perdido a orientação e, desconcertado, adentrou naquela tempestade ensurdecedora em direção a algo que ainda não conseguia perceber muito bem. Mas, no fundo, aquilo não era senão o caminho para a descoberta de outras sensorialidades muito mais além das olfativas. Esta intuição não seria apenas um farejar confuso e desorientado, mas sim um movimento de procura para outro tempo: o tempo da atenção extrema, o tempo da infinidade, o tempo do retorno à própria experiência do tempo… a experiência da liberdade necessária para testemunhar e celebrar a existência e as suas recordações.  


As imagens, não apenas como representações visuais, mas também como presenças que nos interpelam, oferecem-nos esse tempo para desenvolvermos algum tipo de instinto. Mas por vezes, é difícil parar no tempo que essas imagens nos reclamam. Diria, até, que nos contorcemos por dentro, extraindo conclusões momentâneas como sinais de eloquência forçada. E mesmo sem total precisão, estamos aqui muito próximas de um tipo de intuição... farejante. Ocupamos um lugar, aquele a que pensávamos corresponder, para saudar assim todas as formas de conhecimento que auxiliam e condicionam a curiosidade do nosso olhar.


Devagar e persuadidas como Jade, através das linhas, das cores, das manchas e dos cheiros que as  imagens  destes trabalhos de José nos oferecem, pensamos logo que nunca mais será possível conjugar a sua pintura sem atender ao enredo vital e complexo, do qual fazemos parte enquanto sujeitos expostos a uma interdependência de condições e de espécies. E é assim que vivemos, um dia diante do outro. Um dia após o outro. Utilizando a primeira pessoa do plural. Nós (como as imagens) negociamos as formas de afirmar aquilo que nos conecta. Um querer ser, e preferir representarmo-nos juntas. Fazer do espaço cotidiano um lugar de companhia. Apresentar o tempo, no qual habitamos, com uma elasticidade tal que possibilita o aparecimento da atenção profunda, da vulnerabilidade, da sensibilidade do que nos envolve e, inevitavelmente, do desconcerto perante todas as coisas que não percebemos. A pintura do José é, também, conjugar em cada gesto a primeira pessoa do plural. 


Partindo daquilo que nos é mais íntimo, e sem medo de nos mostrar indefesas, todas estas imagens e objetos declaram-nos uma brutal vontade pela intensificação da vida. O correr dos rios, a imponência das montanhas, as árvores, insetos, pedras e líquenes, alimentam uma história de amor: a dos simples pormenores da vida. Uma história multiplicada em camadas de veladuras, traços, gestos e expressões sensíveis. Imagens, que se observarmos a partir de um plano fixo equidistante, com aquele olhar técnico de quem busca a destreza no desempenho da linguagem pictórica, certamente chegaremos ao abismo da desorientação.

Mas é assim, novamente, como Jade, que seremos arrastadas para o  interior da tempestade, em direção ao pânico de perceber com todos os sentidos possíveis. E a partir daqui escorregamos então, sobre a relva dos mais amplos prados, jamais imaginados, repousando de seguida ao abrigo da espessa, e macia gordura da tinta na tela. E já deitadas, exaustas, fitando o nosso olhar, sem pronunciar qualquer palavra, cegadas pela abundância de tanta felicidade virá, talvez, o conhecimento.


É por isto que não consigo pensar numa forma melhor de nos relacionarmos com todas estas imagens a não ser com a sensação de estarmos cegadas por elas. Cegadas para aprender a olhar o mundo com todos os sentidos - o olfato incluído.  



Juan Luis Toboso


(1). Jade é o nome do protagonista do texto, Amar um Cão de Maria Gabriela Llansol. Um texto Incluído no livro O senhor de Herbais: breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações / Lisboa. Relógio D'água, 2002.


texto para a exposição "Faro" no Clube de Desenho, Porto, 2025